Thursday, November 18, 2004

Espanto (continuação)

- Olhar através de bolas de gude (ou melhor, "burcas"), mergulhar naquele mar de vidro colorido e suas bolhas brilhantes
- a árvore do enforcado- próximo da chácara do meu avô havia uma estrada de terra que seguia um platô que terminava num desfiladeiro, a vegetação nesse platô era constantemente exposta a fortes ventos que retorciam seus troncos. Uma destas árvores, um aracati, que margeava a estrada, tinha um tronco retorcido quase em ângulo reto, formando uma espécie de batente de uma porta imaginária naquele caminho. Corria então a estória de que muitos anos atrás um pobre diabo havia se enforcado naquela árvore, tão propícia a tal intento, e que em certa hora da noite (provavelmente à hora em que o infeliz se lançou em seu salto sem volta), caso alguém estivesse próximo da árvore, veria um vulto balançar, e caso estivesse embaixo da mesma, sentiria um baque surdo na cabeça e nos ombros como se o peso de membros oscilantes e sem vida os tocassem. Em muitas tardes, o observar desta árvore insólita me fez questionar a morte e os momentos que a precederiam, principalmente numa morte programada.
-o anjinho- tinha eu então uns cinco ou seis anos, e meus pais me levaram ao velório de um bebê recém-nascido que morrera prematuramente. Não marquei muito a face do pequenino, mas gravei a face de seus pais, gente pobre, simples, ele se chamava Mathias, era pedreiro, de barba rala, ela eu não sei o nome, mas ambos tinham traços que me lembravam as narrativas bíblicas ou antigos filmes bíblicos, talvez fossem mesmo rescaldos genéticos de tantos cristãos-novos que vieram para estas terras. Mas só sei que desde então, quando penso no que seriam os rostos de São José e da Virgem Maria, me vem à cabeça os rostos de Mathias e sua mulher, rostos de um sofrimento com resignação altiva, sem traços de auto-comiseração, sem a menor espalhafatosidade.Me pareciam santos.
- E por falar em santo, de certa feita vi uma apresentação na igreja (naquela época começava já a maldita penetração de violões e ritmos que de católicos não tinham nem o cheiro) em que um menino entrava travestido de santo (não me lembro qual) carregando uma imagem. Vestiram o pobre garoto com uma batina azul-calcinha ridícula, que o deixou com uma aparência andrógina (para não dizer meio gay), tudo embalado por uma música melosa. Se aquilo representava a santidade, naquele dia resolvi que não queria ser santo de jeito nenhum.
Pois bem, recordações que ficaram, imprints na alma, que décadas depois ainda fazem diferença.Impressões que deveriam ser a base do desenvolvimento das pessoas, mas que hoje são sonegadas, por que preferimos entrar nas engrenagens que regem um sistema mecânico, sem espírito, sem magia...

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